No texto “A descoberta do Mundo” de Clarice Lispector, há uma passagem em que ela afirma: “Esta é uma declaração de amor; amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável.”. Pois bem, ela não é fácil mesmo. O domínio da norma culta exige muita leitura do falante para compreender a sua gramaticalidade. Poucos sabem a diferença entre próclise, ênclise e mesóclise; poucos sabem diferenciar orações subordinadas substantivas, adjetivas e adverbiais das orações coordenadas; poucos sabem onde, e quando há uma ocorrência de crase; o falante do português brasileiro desconhece os verbos conjugados no pretérito-mais-que-perfeito do modo indicativo, tampouco compreendem o significado de muitas palavras que compõem o léxico da língua. Se para nós que temos acesso ao mundo linguístico é difícil, imagine para aquele desprovido de escola, professor, livros e educação! Ora, caro leitor, pense no cidadão que mal sabe escrever o seu nome.
A língua portuguesa é excludente. Nos versos de Olavo Bilac, as duas primeiras estrofes do poema “Língua portuguesa” o poeta diz: “inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela…” A língua é sepultura para os pobres. Há mais características zoomórficas nas classes mais baixas do que o próprio ato de comunicação. Isso é preocupante. Agravam-se ainda mais quando o anglicismo começa a tomar conta do cotidiano do povo brasileiro: “lockdown”, “crush”, “delivery”, “download”, “drive-thru”, “feedback”. Pasmem! Há uma desvalorização tão grande desta flor do Lácio que o cidadão que precisa apenas do ato da fala para a sua sobrevivência acaba se tornando refém do falar que não lhe pertence. Ainda há aqueles que insistem em utilizar os pronomes neutros para dificultar ainda mais o acesso que o sujeito periférico tem na luta da sua sobrevivência.
Um dia, poder-nos-emos apoderar de outras línguas maternas como cultura, mas primeiramente é preciso que a nossa língua materna ecoe pelas classes sociais mais baixas para que ela se torne inclusiva e deixe de ser uma língua elitista. Ao mesmo tempo, com a valorização da língua, que o tupi possa vir à tona e que o Saci seja realmente comemorado no dia 31 de outubro para encerrar de vez a cultura de uma abóbora de olhos e boca grande e a sua língua dominante.